sábado, 30 de outubro de 2010

O Guarda Chuva


Chovem protestos palavras
dramaturgos e profetas:
a chuva dos manifestos
fecunda a horta das letras.
Chovem bátegas de sílabas
chovem doutrinas e tretas
chovem ismos algarismos
que numeram os poetas.
Chovem ciências ocultas
chovem ciências concretas
e nascem alfaces cultas
para poemas-dietas.
Chovem tiros de espingarda
chovem pragas e lamentos
e cresce a couve lombarda
nos quintais do sentimento.
Chove granizo política
dum céu carranca cinzento
constipa-se logo a crítica
que se mete para dentro.
Chovem as poetisas símias 
da menina flor dos olhos
surgem canteiros de zínias
salpicados de repolhos.
Chovem as mulheres a dias
com os sonetos nas curvas
lavadeiras de poesia
em barrela de águas turvas.
Chove uma chuva de pedra
chovem astros em cardume
há uma erva que medra
com este estrume de lume.
Medra a erva do talento
medra a baga do azedume
não há erva que não medre
nas estufas do ciúme.
Chove uma chuva miúda
que é chuva de molhatolos
sai o poema taluda
e saem rimas nos bolos.
Para o poeta que chova
por dentro,em razão inversa,
forçoso é ter guarda-chuva
contra a palavra perversa
que foi um chão que deu uva
e hoje só dá conversa.
José Carlos Ary dos Santos

Tiago Bettencourt & Mantha. Pequeno concerto. Antiga Fábrica braço de Prata.













Tiago Bettencourt & Mantha "Se Cuidas de Mim" - videoclip oficial

SOFÁ EFERVESCENTE (Clicar em cima de Meifumado Fonogramas para ver video)

Meifumado Fonogramas

FADO SUPERSTAR (Clicar em cima de Meifumado Fonogramas para ver video)

Meifumado Fonogramas

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A fuga(do pensamento).


O corpo. sentia-o cansado mas nada que não conseguisse suportar. tentava esquecê-lo. apostava na cabeça. essa sim o seu bem mais precioso. precisava dela para falar, para ouvir, para ver, mas essencialmente para pensar. que seria de sim sem o seu pensamento. pensava nisso e pensava-se nada. sem se pensar não se pode viver. tinha a certeza disso. para onde ia o pensamento. que caminhos tomava e lhe mostrava. nem sempre os melhores. nem sempre os mais alegres. por vezes disparatados, obcecados. existiam para dar cor à vida que passava. em frente aos olhos. os olhos. tinha-os cansados. tão cansados que as órbitas lhe pareciam enormes. sentia-as grandes e vazias. ocas. se visse mais iria ouvir o eco do espaço das órbitas. o cansaço que lhe mede os dias. os dias que lhe tragam os pensamentos. os pensamentos que lhe dizem o cansaço. o cansaço que lhe pede o descanso e a fuga. a fuga impossível que retorna o pensamento. está a chegar ao limite. deita-se. no chão. fecha os olhos. o eco do pensamento continua a atordoar-lhe o cérebro. esquece. não é ninguém. matou o corpo. apenas o pensamento permanece. solta-o pelo ar. através da pálpebras cerradas vê-o subir. para longe de si. para outro corpo. para outro alguém que possa fazer dele a realidade e não a fuga.

                                                Texto: Vera Lima Vekiki Projects

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Correio

Espero que não demorem a mandar
Novidades na volta do correio
A ribeira corre bem ou vai secar?
Como estão as oliveiras de "candeio"?
Rio Grande-Postal dos Correios

Rio Grande - Postal dos Correios (Official Videoclip) 1996

segunda-feira, 18 de outubro de 2010


sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra
(…)

Mário Cesariny

domingo, 17 de outubro de 2010


Algum dia um novo Papa
anunciará altivo
que Deus é raiz quadrada
de um quantum negativo
e o Deus que tanto procuro
em que atingido me afundo
é aquele ser-não-ser
do que acontece no mundo
da matéria mais que densa
é que é divertido ser
ali se nada acontece
tudo pode acontecer

Prof. Agostinho da Silva

sábado, 16 de outubro de 2010

Intervenção.



Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.

Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.

Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.

José Saramago

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Os troncos das árvores


Os troncos das árvores doem-me como se fossem os meus ombros
Doem-me as ondas do mar como gargantas de cristal
Dói-me o luar como um pano branco que se rasga.
Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 13 de outubro de 2010


Sou um evadido.

Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi. 

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar? 

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre. 

Ser um é cadeia,
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.

Fernando Pessoa.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Faz-se Luz


Faz-se Luz





Faz-se luz pelo processo 
de eliminação de sombras 
Ora as sombras existem 
as sombras têm exaustiva vida própria 
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela 
intensamente amantes    loucamente amadas 
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta 
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem 

Por outro lado a sombra dita a luz 
não ilumina    realmente    os objectos 
os objectos vivem às escuras 
numa perpétua aurora surrealista 
com a qual não podemos contactar 
senão como amantes 
de olhos fechados 
e lâmpadas nos dedos    e na boca 

Mário Cesariny, in "Pena Capital"

Há-de flutuar uma cidade.



Há-de flutuar uma cidade


há-de flutuar uma cidade no crepúscolo da vida 
pensava eu... como seriam felizes as mulheres 
à beira mar debruçadas para a luz caiada 
remendando o pano das velas espiando o mar 
e a longitude do amor embarcado 

por vezes 
uma gaivota pousava nas águas 
outras era o sol que cegava 
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite 
os dias lentíssimos... sem ninguém 

e nunca me disseram o nome daquele oceano 
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas 
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua 
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar 
se espantasse com a minha solidão 

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.) 

um dia houve 
que nunca mais avistei cidades crepusculares 
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta 
inclino-me de novo para o pano deste século 
recomeço a bordar ou a dormir 
tanto faz 
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade 

Poema. Al Berto
Fotografia: Diário de Lisboa.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Fundo do mar.






Fundo do mar
No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.



Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I
Fotografia: Diário de Lisboa, algures no Guincho.

CAMANÉ "Sei de um Rio"

Tempestade.



Da nuvem densa, que no espaço ondeia,
Rasga-se o negro bojo carregado,
E enquanto a luz do raio o sol roxeia,
Onde parece à terra estar colado,
Da chuva, que os sentidos nos enleia,
O forte peso em turbilhão mudado,
Das ruínas completa o grande estrago,
Parecendo mudar a terra em lago.



Poema: Gonçalves Dias
Fotografia: Diário de Lisboa
Poema completo aqui.